A recuperação do ideário romântico na obra de Mirela Cabral, em seu viés expressionista, preserva o desejo de diluir a antítese entre o eu e a natureza, e o intuito de resgatar a espiritualidade perdida na era da máquina, ideais que ressoam desde as origens românticas. Ao se voltar a todos os que trataram a paisagem como expressão de um estado de espírito, e não como vista ou pano de fundo, ela recria o elo entre a arte e o mundo orgânico, e o repropõe como experiência contemporânea de pintura.
A artista reatualiza a filiação romântica que adentrou o expressionismo-abstrato norte-americano, partilhando o interesse pela paisagem com artistas do quilate de Joan Mitchell e, mais recentemente, Cecily Brown, que cultuam o estado libertário da mancha e da antiforma. Com a revalorização do lirismo e das pulsões pictóricas, que dão à tela uma dinâmica volátil e febril, a brasileira também se embrenha nas formas vibrantes da natureza, perseguindo com seu olhar a mesma fluência e a cumplicidade estrita com a paisagem. Ao aludir à vegetação natural e informe, sua pintura, porém, resvala da estrita representação, é um ser fugidio, que enuncia claramente o seu não pertencimento à ordem natural do mundo.
Suas telas são campos de irradiação cromática, onde se observa a mutação contínua das aparências, e onde as formas são atomizadas em múltiplos pontos de vista, cambiáveis e flutuantes no espaço. A gestualidade pulsante e a consequente interpenetração formal transcrevem a paisagem em pleno ato de sua percepção, com a mobilidade vivaz e a vibração sensível que lhe é própria. Emergindo como imagem transitiva, apreendida na velocidade mental e emocional da artista, a pintura de Mirela Cabral conjuga com aquela temporalidade inquietante de que Harold Rosenberg, desde a action painting, nomeara como estética da impermanência.
A pluralidade de gestos sucessivos e simultâneos, a diluição das formas e o relacionamento convulsivo das cores fazem dessa pintura uma verdadeira escrita automática, um complexo de planos justapostos, que jamais se estabilizam na superfície e que parecem se mover continuamente ao nosso olhar. As telas de Mirela Cabral querem figurar a forma em processo, no trânsito de sua formalização, na oscilação das cores e na urgência do seu fazer. Nelas, não há contornos precisos ou volumes delineados, mas, sim, um emaranhado de cores e manchas, que se acasalam de maneira fortuita, e cujas tensões no espaço acabam por se instituir como a própria estrutura da imagem.
A formalização dissoluta e intuitiva da artista retoma, sem dúvida, a expressividade lírica do informalismo histórico, sedimentando, no presente, uma abstração vinculada à liberdade formal e à subjetividade. A exteriorização do eu, no entanto, não se remete aqui apenas a estados psíquicos e emocionais da artista, mas, antes, liga-se ao sentimento do espaço, a uma comoção atrelada à vivacidade e ao funcionamento das cores, assim como à sensualidade das texturas e à corporeidade da tinta. Na verdade, trata-se de uma pintura em atividade, não mediada por esboços compositivos a priori, uma pintura com fatura explosiva, sujeita a uma avalanche cromática, em toques nervosos da mão. Repetimos, porém, que essa premência não se restringe às pulsões existenciais, ela é também objeto de reflexão sobre as perspectivas do agir pictórico diante da crise do “novo” e do entrelaçamento dos tempos históricos como releitura crítica do passado. Não estamos mais diante do romantismo contemplativo do século XIX, mas será sempre possível regenerar as visões inquietas da paisagem, a união de espaços fracionados e heterogêneos e a transitoriedade da percepção do real, primados românticos que prenunciaram a linguagem autônoma da obra moderna, atualizáveis em qualquer época.
Ligia Canongia, 2024