O palimpsesto de Renato Bezerra de Mello
Renato é um artista-pesquisador cuja trajetória singular entrelaça a experiência como arquiteto-restaurador ao sonho juvenil de arqueólogo.
Nesta exposição que celebra 25 anos de trabalho as obras nos oferecem um espetáculo resplandecente no brilho e na translucidez do cristal, na exuberância cromática e na versatilidade formal. Contudo, para além da materialidade sedutora, a obra convoca nossa capacidade de apreender o substrato conceitual que a fundamenta, revelando camadas de significado intrínsecas ao seu processo de criação — seu palimpsesto.
A obra nasce do encontro com materiais cotidianos impregnados de memória: bordados em lenços paternos, cacos de cristal de instalações anteriores, vídeos das ruínas da fábrica têxtil e da casa da fábrica que pertencera a seu avô em Recife, espaço onde, ainda menino, despertou seu interesse pela arte. São seus “achados” — termo que evoca uma descoberta quase mística, uma epifania ou uma revelação do inconsciente.
A reciclagem constitui seu método estruturante. Renato desmonta e remonta obras, contextualizando-as em diferentes versões. O processo não é linear: analisa, reconstrói e reconfigura continuamente, dialogando com a poesia, a música, a filosofia e a história. Sua reflexão filosófica — existencial, desconstrutiva e fenomenológica — não é livresca, mas vivida. Cada obra conta histórias pessoais — a experiência da solidão, do deslocamento precoce e o manancial de empatia — que também são coletivas. Sua narrativa autobiográfica entrelaça-se à de seus contemporâneos, abordando migração, perdas e marginalização social. Ciente de seus privilégios, o artista resiste corajosamente às estruturas limitantes que impõem qualquer forma de exclusão.
A inspiração para o trabalho com cacos de vidro surgiu na primeira exposição carioca, a coletiva Memórias Heterogêneas, no Castelinho do Flamengo, quando despedaçou dezenas de taças de cristal colecionadas com seu marido, ao som de Marina Lima: “Quem vai colar os caquinhos do velho mundo?” Os fragmentos acentuam a transformação e a negociação entre passado e presente, associando-se à ideia de ruínas não como estética nostálgica, mas como ferramenta de crítica cultural para refletir sobre as mudanças ambientais e a própria natureza do tempo.
Desde o início do século, Renato já trabalhava com conceitos que hoje estão em voga: ancestralidade, ruínas, memória e deslocamento. As obras deste palimpsesto extraem da vulnerabilidade dos caquinhos da história a beleza da poesia refratável no tempo. Propõe que, para enfrentarmos tempos tóxicos e bélicos, será preciso começar pelos fragmentos, retornar ao pó — sem prescindir do cuidado, da beleza poética e da empatia —. A ênfase recai sobre a potência da criatividade diante da fragilidade, empenhada nas possibilidades infinitas de reconstrução e regeneração.
Colecionador de destroços, apreciador do frágil, Renato transforma cacos em preciosidades e nos oferece o espetáculo esplendoroso do acontecimento da arte. Como poetizou Armando Freitas Filho: “Tudo o que é frágil brilha sem medo do esplendor.”
Paula Terra-Neale
Curadora