A arte de oposições de Gilberto Salvador
No limiar entre estrutura e intuição, entre o cálculo arquitetônico e a ebulição do gesto, desenha-se a poética de Gilberto Salvador. A exposição Geometria Visceral, concebida para ocupar os espaços históricos do Paço Imperial no Rio de Janeiro, que hoje se afirma como centro de reflexão crítica e estética, propõe um itinerário temático dentro da obra do artista. Com um caráter panorâmico, mas centrado na produção atual de Salvador, a mostra será estruturada em cinco núcleos que sublinham sua vocação dialética e multiplicidade de meios. Reunindo aproximadamente trinta obras, entre pinturas, esculturas e documentos, a exposição reafirma o que Jacob Klintowitz definiu
como a essência do trabalho do artista: uma arte de oposições, na qual a forma geométrica e o gesto lírico coexistem em tensão criativa.
Formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, Salvador soube, desde seus primeiros trabalhos nos anos 1960, fundir a racionalidade construtiva com um ímpeto visual orgânico. Suas primeiras experimentações gráficas e pictóricas revelam uma consciência política imbricada ao ato plástico — a cor como discurso, o traço como denúncia. Na sequência de sua produção o artista enfoca a estrutura e a organização do espaço como linguagem simbólica. Linhas geométricas, volumes fragmentados e composições calculadas evocam a sua formação como arquiteto e sua capacidade de construir mundos visuais nos quais o rigor formal é permeado por uma inquietação subjetiva. Por vezes seu trabalho se apropria de elementos da fauna, da mitologia indígena e do imaginário popular para compor um léxico visual brasileiro que propõe uma síntese entre memória coletiva e fabulação individual, explodindo em cor, ritmo e densidade simbólica. Não podemos deixar de fazer referência às suas obras públicas, como a monumental Voo de Xangô, que
instauram no espaço urbano a presença escultórica como experiência sensível e memória coletiva. Suas esculturas não impõem formas ao espaço, mas o interpelam, convocando o transeunte à fruição estética e à experiência do sagrado cotidiano. Nos seus trabalhos mais recentes o artista transita entre a abstração e o símbolo, entre o traço circular e o campo cromático como espaços de meditação plástica. São obras em
que a tensão entre controle e impulso, já presente desde os primeiros anos de sua carreira, atinge uma maturidade estética que transcende o plano da imagem para tocar o sensível como campo de expansão da consciência.
Geometria Visceral se inscreve, assim, como uma proposta curatorial que não apenas revisita a trajetória de Gilberto Salvador, mas a reinscreve dentro de um discurso contemporâneo sobre a arte brasileira como território de contradições, invenções e deslocamentos. No ambiente repleto de história do Paço Imperial, as obras de Salvador reverberam como gestos de reinvenção — da forma, da memória e do olhar. Vale observar que a obra de Salvador, integrante essencial da cena artística paulista, é hoje pouco conhecida no Rio de Janeiro, em grande parte devido às dificuldades de locomoção do artista, cadeirante, pouco afeito a evocar suas limitações físicas, e, exatamente por isso, um exemplo de resiliência e coragem. Com isso, a exposição reveste-se também de um caráter de ineditismo, oferecendo ao público carioca a oportunidade rara de descobrir um artista, na madura plenitude de sua produção.