Claudia Lyrio

O manuscrito

O MANUSCRITO
“O mundo irá acabar em um belo Livro”, disse Stéphane Mallarmé. Le Livre, sua Grande Obra, sinfonia arquitetônica, órfica-visual, jamais seria escrito. Mallarmé, ao procurar a poesia pura, a origem do ato de nomear, encontrou o acaso, o branco da página como oceano ou céu, como naufrágio ou constelação da palavra ali desenhada. “O esboço de um livro que um dia viria (sic) a ser editado”, disse Cláudia Lyrio ao iniciar O Manuscrito durante o confinamento da pandemia de Covid 19, quando o sentimento agônico de finitude e colapso, de nós e do mundo, e os sinais definitivos da catástrofe em comum, se instalaram em nossas vidas.

Lyrio, em sua dupla formação, Letras e Artes, entrelaça os campos da arte e da literatura em obras híbridas entre pinturas, desenhos, aquarelas, colagens e livros de grandes e pequenas dimensões. O conjunto “O Manuscrito” é um livro de ficção em que cada tela, de grande dimensão, se configura como uma página, escrita-desenhada-pintada por uma de suas personas. A esse conjunto-livro, se reúnem outros seis: ficções, personagens ee personas (a escritora, a naturalista melancólica…) que saltam entre tela e outra, em anacronismos e analepses, ora borrando a legibilidade, ora cintilando em uma frase, um fragmento poético, um verso extraviado. São glosas marginais de um livro rasurado e para sempre incompleto — escrito em torno da ausência da Palavra que prometia a tradução inequívoca de nossas experiências nesta vida, pintado com pujança ainda que este mundo acabe.

“Livro-quadro-compostagem,” como percebe a artista-escritora, “de fragmentos e camadas de uma caligrafia pessoal, quase sempre cursiva”, que operam nas tensões e nos enlaces entre escrita e pintura, letra e imagem, visível e invisível, legível e ilegível, sentido e ruína. A grafia que nele escreve, também desenha e pinta, como na escrita ideográfica, convocando o corpo-gesto caligráfico a responder aos sismos do mundo e a seus ritmos, a resgatar a potência visual recalcada na escrita alfabética ocidental. Escrita fonética que, desde os gregos, esvaziou o caráter imagético de sua letra e subjugou-a à voz. Na civilização do alfabeto, entretanto, a imagem recalcada da escrita, que estava lá desde os primeiros signos desenhados na caverna, permaneceu como um espectro, que sempre assombrou e emergiu em suas artes: nos poemas visuais do grego Símias de Rodes (300 a.C.) e nas carmina figurata; em códices, iluminuras e palimpsestos; nos bestiários medievais e nas ilustrações dos naturalistas; nos labirintos de letras barrocos, em acrósticos e anagramas, em enigmas e emblemas; em textos-amuletos (poemas encantatórios e mágicos) e na escrita automática dos surrealistas; em jogos de (não) sentido dos dadaístas e no Caligrama de Apollinaire, na poesia concreta e nas artes conceituais, na escrita assêmica ou em versos pichados nos muros da cidade.

São esses espectros que vêm povoar as telas, livros e desenhos de Lyrio, em seus grafismos e rasuras, rabiscos e apagamentos: são anotações voláteis do que escapa, como os sentidos, mas também os silêncios que os fundam.

Inscrevem-se na superfície como os primeiros pictogramas na pedra, como as pegadas dos pássaros e os cascos das tartarugas com suas mensagens divinatórias, como os grafismos na pele ou os petróglifos sulcados na terra para serem vistos pelos deuses, como as gavinhas das plantas e o arado fendendo o solo, como o estilete na argila e a tinta na página e no plano pictórico. Como se quisesse despertar das superfícies seus segredos luminosos; desvelar, deste compêndio de enigmas, o que constitui o cosmos e seus seres, o mistério das palavras e das imagens. Mesmo sabendo impossível.

Marisa Flórido Cesar

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