Na unidade das pinturas, Miguel pinta o vento. Você vê?
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No centro dos quintais de Miguel Afa há sempre um xirê em curso.
A árvore reguladora, a mãe que assiste ao crescimento anímico da prole, o chão de terra
batida sacralizada pelos pés, as personagens e as paisagens, desafiam o concreto colonizador.
No giramundo do artista conhecemos seu inventário permanente, tudo o que continua sob a
regência do eterno quintal lavado com o filtro terroso da memória.
No xirê, cada volta é de compasso. Pra frente e pra trás, amanhã-ontem-hoje, deslocam o ar
atmosférico em dança, ao que chamamos de vento. No Complexo do Alemão da infância de
Afa havia apenas duas direções desse vento: tá pra pipa ou não tá pra pipa. Os pipeirões,
hoje-agora, são elementos de condução da memória do artista, mas primeiro foram
catalisadores da atenção de um menino-menino que passou a mirar o céu. As pipas, que
mimetizam também o vento, serviram de geolocalizadores da sua área. Miguel Afa,
homem-menino, soube em carretel, em cerol, em cortar e aparar, em búlica, em minhoca, em
gude, em estender a lata amarrada no cabo da vassoura, que a única maneira de se vincular a
um território é brincando nele.
Como decisão de pintura, elementos de resistência são celebrados no figurativo: onde vemos
a flor que burla o tijolo está o amor que burla a aspereza do cotidiano, a.k.a, A revolução. O
requinte das suas composições é revelado não só pela dramaticidade dos objetos em registro,
mas também pela assinatura dessa fase — a indexação das cores orgânicas, uma ode ao
tempo inquebrantável. A preservação das cores primárias em harmoniosa cobertura da tinta
da memória fabula: Afa quebra o cimento com a mão, cavuca os torrões com a unha e arranca
do centro do barro a sua paisagem interna aqui retratada.
A geminação resulta numa árvore. De pé pelas raízes, o tronco — destino final das rabiolas —,
sustenta a coluna narrativa da seleta de pinturas. Em torno da árvore, o espectador arrodeia o
que está fincado e passa a fazer parte da cerimônia do xirê. Na experimentação dos caminhos
estamos no quintal proposto por Miguel. À sombra da árvore, as telas de baixa luminosidade.
Quando evita a alta incidência de luz nas suas composições, Afa nos incita a perder o medo de
existir no escuro.
O título da exposição fragmenta frase de Van Gogh, que em carta para o irmão Theo provoca,
“Os moinhos não existem mais; o vento continua, todavia.” Diante da obra-itinerário produzida
por Miguel Afa, somos conduzidos pelo vento pressupondo a teimosia primordial, que justifica
tudo ainda
estar.
“agora agora agora
agora já passou
passou de novo
mas a rabiola continua”Jeovanna Vieira