Fingir que não entende é uma tática de sobrevivência feminina. É também uma tática de sobrevivência das imagens.
Analu Cunha tem trabalhado com a recusa das imagens de serem agarradas por um sentido único. Imagens, diz a artista, erram por aí. Perambulam entre coisas e pessoas. São ambíguas, multidirecionais, acumulam sentidos. Estão sempre em trânsito, lá e cá, aqui, agora, antes e depois. Desentendida expõe, a partir de um pequeno conjunto de vídeos de Analu, um arco temporal de 20 anos de produção. Da seleção, revelam-se operações que a artista propõe por meio da (re)produção de suas imagens. São imagens nascidas da neblina. Imagens que se dissipam em uma sequência de gestos ritmados. Imagens balbuciadas, feitas no engasgo, no exílio e na morte. Imagens à procura de imagens desaparecidas. Imagens surgidas da cegueira. Imagens nascidas dos desencontros entre legenda, som e imagem.
A câmera segue o movimento de um peixinho – triggerfish Picasso – durante 7 minutos. Ele sobe e desce dentro do aquário. Dá voltas. O peixe entra e sai da cena. Faz-se um esforço para acompanhar sua rapidez e desenvoltura. Analu produz uma série de agenciamentos a partir de operações econômicas (de contenção). Em Picasso enquadrado, ela espelha o deslocamento do peixe com o movimento da câmera. Essa economia é ponto de partida para a realização do vídeo: filmar o peixinho. Da restrição, aglutinam-se associações que saem e retornam para dentro da cena. O peixe é Picasso. Picasso é um pintor. A pintura é quadro. O vídeo tem quadro – a cena. Uma cena depois da outra é uma sequência. A imagem em movimento de triggerfish Picasso está enquadrada pelo aquário, pela câmera e pela pintura.
A economia de contenção perfaz a história de sobrevivência das imagens da artista, pois nos arrasta para onde e como sua câmera aponta: um homem navega por uma pista de skate, um menino brinca com seus dedos, uma janela está aberta em um dia de sol. Esse caminho, traçado por seu trabalho, define uma política de fabricação, uso e sobrevivência das imagens. Analu esgarça situações triviais. Parece nos pedir: ei, olhem para cá, novamente. Ao olharmos, a artista nos expõe a falta de sincronia, os pequenos erros, a acumulação pela síntese e a opacidade das imagens.
A trilogia Misunderstood está exposta, aqui, de maneira inédita. Em português misunderstood significa mal-entendido, desentendimento. Analu Cunha, nos três vídeos, utiliza recursos de montagem na própria gravação. Das janelas dos trens, a paisagem passa rápido. No entanto, acoplado ao que se vê passar do lado de fora, vê-se também uma tela de computador, localizado sobre a mesa de um passageiro – Misunderstood [écran, scherm, screen, tela]. Na tela, reflete-se o exterior (o céu, as plantas, os cabos), sobreposto a um desenho animado japonês. Em Misunderstood [dialoog], vê-se um pictograma de duas pessoas conversando no canto da janela do trem. Na legenda do vídeo, lê-se a música Don’t Let Me Be Misunderstood. A artista, em Misunderstood [Sainte Victoire], tenta avistar a montanha pintada tantas vezes por Cézanne. Sua busca pela montanha se entrelaça a memórias do irmão falecido. Sabemos, pelo vídeo, que Santa Vitória foi uma mártir sem língua. O silêncio é outra tática de sobrevivência das imagens. Analu Cunha, em Desentendida, mostra que esse silêncio é cheio de ruídos, diálogos, lembranças e música.
Natália Quinderé
Áudio:
Quando eu era pequena, fui ao Maracanã com meu pai ver o Botafogo jogar.
De tempos em tempos perguntava a ele quem estava ganhando.
Em dado momento, meu pai, sem paciência, falou: olha no placar!
Mas pai, que placar?!
Aos 10 anos, descobriram que eu já tinha dois graus e meio de miopia. Ou seja, passei minha infância deixando, pouco a pouco, o mundo cada vez mais fora de foco.
Foi uma grande surpresa para todos: pai, mãe, irmão, irmã, todos tinham hipermetropia, deficiência visual oposta à minha.
O mais louco, para mim, foi perceber depois que minha família não conseguia me ver justamente porque eu estava próxima a eles e eu, ao contrário, não enxergava ninguém além deles.
Depois dos óculos, passei a gostar de acordar e tornar bem lenta a passagem entre o sonho e a visibilidade extrema, esticando ao máximo esse tempo entre essas duas realidades.
Aos 18, já com 5 graus e meio, meu pai me levou a um cirurgião para corrigir a miopia. O único risco, segundo o médico, era eu virar hipermétrope.
Falei pra ele que minha relação com o mundo era de míope, e que não teria estrutura para mudar isso de uma hora para outra. Ele disse a meu pai que não iria me operar e que eu precisava de acompanhamento psiquiátrico.
Nessa foto, olho feliz para a câmera, em foco.