Notas de um percurso
A arte sempre me atraiu, desde a infância, e na adolescência colecionei publicações vendidas em fascículos nas bancas de jornal, experimentando técnicas para copiar imagens na tentativa de entender como eram feitas as reproduções.
Nos anos 70, interessado por fotografias de jornais e revistas, selecionei e utilizei essas imagens como referências para desenhar a grafite, matéria que exploro até hoje, pesquisando paralelamente as possibilidades da xerox com os poucos recursos disponíveis à época.
Elaborando e aprofundando questões do desenho, desenvolvi séries nos anos 80 e 90 com técnica bastante acurada, virtuosismo que fundamenta o desejo de materializar fantasmas da minha imaginação estimulada pela força das estampas da arte.
Cada vez mais interessado nos métodos de reprodução gráfica, no início dos anos 2000 experimentei a combinação de técnicas de gravura, procedimentos fotográficos e recursos digitais, sempre propondo relações instigantes entre os meios.
A partir de 2015 comecei a fotografar com o celular, redescobrindo o aparelho, que assumi como um novo instrumento de trabalho, dando continuidade à pesquisa e reflexão sobre materialidade e imaterialidade, singularidade e multiplicidade das obras de arte e suas reproduções.
A exposição Amador Perez 50 Anos Fotolivrografias é composta por quatro núcleos: Eus e Um, variações digitais recentes sobre a série homônima original de 42 autorretratos que desenvolvi através de desenhos a grafite e lápis de cor entre 1987 e 1990; Linha do Tempo, seleção de 50 trabalhos que apresentam uma visão retrospectiva de minha trajetória; série Piranesiana: Fundição (2015-22), onde parto do fascínio que a obra gráfica de Piranesi exerce sobre mim explorando seus projetos de lareiras, surpreendentes gravuras em metal onde o autor representa o fogo em 37 variações singulares; e a série Goyesca: Taurografia (2018-23), onde reúno e componho sobre estampas da icônica Tauromaquia de Goya, objetos relacionados, em minha fantasia, às touradas e à própria técnica da gravura.
Nunca limitei meu trabalho a um tipo de técnica apenas e pretendo que a diversidade de meios que utilizo exprima a coerência das minhas ideias.
Amador Perez
Amador Perez 50 Anos
Cinquenta anos de carreira. Poucos artistas têm o privilégio de comemorar esse marco em plena efervescência. Uns despontam cedo, e depois esmorecem. Outros começam tarde. O mais comum são os que vivem uma fase de intensa criatividade, em que produzem as obras que firmam suas reputações, e passam o resto da vida a burilar esses achados. Amador Perez é exceção. Começou bem, lá pelos idos de 1974, e fica cada vez melhor. É um raro caso de universo imaginativo em contínua expansão.
Quando tomei consciência do trabalho dele, em 1990, Amador já era reconhecido como mestre do desenho. Suas obras tinham um grau de elaboração técnica que provocava palpitações no coração de um pobre estudante de história da arte. Mas o virtuosismo pelo qual era aclamado mascarava uma densidade conceitual então menos compreendida. Nos anos seguintes, o artista foi revelando aos poucos que o desenho era uma ferramenta, entre outras. Molhou os dedinhos na gravura, pulou ondas na colagem, mergulhou de cabeça na manipulação digital, veio à tona na fotografia. Seu domínio é a imagem, em toda sua mutabilidade oceânica.
Por trás do périplo por virtuosismo e variações existe uma ideia fixa. Atravessa toda a obra de Amador a obsessão pelo poder das imagens de evocar a memória. Não a capacidade de registrar as aparências – a velha discussão da mimese e seu avesso – mas a conversa das imagens com outras imagens. Aquilo que os historiadores da arte entendem por iconografia, e que Aby Warburg teorizou como Bildwanderung. Por meio das imagens nos comunicamos com vivos e mortos. Amador se concentrou nesses últimos, seu panteão artístico particular, mas não como hagiografia. O artista se interessa em fazer reverberar os sentidos retorcidos pelo tempo. Seu objeto de fascínio são as reproduções, matéria-prima para a transmutação de significados.
Na era atual de memes, stories e deepfakes, vivemos a apoteose da manipulação de imagens. Para o bem e (geralmente) para o mal, o poder de conduzir as conversas imagéticas molda o mundo em que vivemos. Nesse contexto, artistas e estudiosos vêm se debruçando sobre a importância de desconstruir as imagens e difundir o conhecimento de como elas operam. É um desafio ao qual Amador Perez contribui, a seu modo, há cinquenta anos. Destrinchar imagens, ressignificá-las, preservá-las do apagamento, é a essência de uma obra mais atual do que nunca. É provável que o artista entre para outra categoria que abarca poucos: aqueles que estiveram à frente do seu tempo.
Rafael Cardoso, 2024
historiador da arte e escritor