Ana Hortides

Casa própria

ANA HORTIDES: Casa própria

Para algumas pessoas, as paredes de casa têm ouvidos. As de Ana Hortides, contudo, não se contentam apenas com o membro auricular: elas criam tetas, línguas, verrugas, cicatrizes. Durante o período de incerteza do confinamento pandêmico em 2020, a artista encontrou na casa de seus avós em Vila Valqueire, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, um acervo de elementos arquitetônicos. Materiais que moldaram o gosto das classes baixa e média durante anos tornaram-se objetos de sua investigação: o piso de cera vermelha, quando não de cimento bruto, foi o primeiro a ser experimentado. Depois, os caquinhos de azulejo que cobrem fachadas e quintais chamaram a sua atenção. No ambiente familiar, Hortides descobriu um campo arqueológico capaz de fazer parecer estranho aquilo que outrora fora íntimo.

O processo de desconstrução material logo se converteu em um questionamento mais amplo, buscando dissecar os elementos que sustentam um lar. Assim, a lupa do arqueólogo cedeu lugar à planta do arquiteto em trabalhos que organizam a casa a partir de estruturas modulares, ora produzidas em escala diminuta, ora em tamanho real. Tais componentes aparecem, entretanto, desprendidos de sua função original. Distanciam-se, também, da maquete arquitetônica. A reconstrução das escadas, lajes e fachadas de Hortides observam mais a lógica de construção de uma arquitetura popular: aquele olhar técnico do pedreiro de bairro, dos trabalhadores informais, das famílias que, ao se formarem, passam a almejar uma casa, muitas vezes construída pelas próprias mãos com tijolos, reboco e suor.

Se, de um lado, a arquitetura “de estúdio” assinada por grandes nomes conserva a marca de um estilo autoral durante séculos, a mão anônima do pedreiro guarda histórias diretamente na fundação da casa, erguida para servir ao sonho da propriedade privada. É inegável, porém, que esse ofício carregue consigo um imaginário de gênero, já que, raramente, é desempenhado por mulheres. Hortides subverte essa condição ao se colocar como mestra de obras de seu próprio trabalho, quase nunca terceirizado – prática usual à produção contemporânea. Menos como uma crítica direta a tal conjuntura social do que tensionadores de forma e força, seus trabalhos carregam um índice direto com o corpo de quem mistura a massa e carrega quilos e quilos de cimento. É comum ouvir que o tamanho do ateliê de um artista condiciona a escala de sua produção. Neste sentido, o ateliê de Hortides é seu próprio corpo – que, em uma queda de braço diária, dita o esforço físico máximo para que cada obra veja a luz do dia.

Apresentada em sua extensão e variação pela primeira vez na cidade do Rio, a produção da artista propõe como experiência o indomado silêncio do doméstico. Protuberâncias feitas em cimento e ladrilhos multiplicam-se ao longo da exposição, como um tumor que cresce desordenadamente. A cera vermelha, antes limitada ao chão, ergue-se feito cortina, abandonando sua dureza para tornar-se maleável. Mesmo fachadas distantes, como os raio-que-o-parta paraenses, aparecem como primos não convidados, expandindo o espaço expositivo. A casa própria, que para alguns é um objetivo de vida inegociável, aqui revela uma face nada redentora.

Não vivemos mais um lockdown. As ruas estão aí, permitindo o ir e vir daqueles cuja ideia de passar horas em casa mostrou-se um verdadeiro horror. Para eles, caminhar por esta exposição talvez espelhe esse desconforto. Os acostumados a confrontar a estranheza, Hortides convida a escavar o que nos envolve. Sentar e observar que, além de ouvir, as paredes podem, também, falar.

Lucas Albuquerque

Paço Imperial
Praça XV de Novembro, 48
Centro - Rio de Janeiro
55 21 2215 2093
 
Terça à domingo das 12h às 18h
Entrada Franca
 
Bistrô do Paço
De segunda a sexta, das 11h às 19h30
Sábados, domingos e feriados, das 12h às 19h
 
Entrepasso gastronomia
De segunda a sexta, das 10h às 20h
Sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h