É possível ler essa exposição avançando e retornando pela sala, como o movimento da memória. Sobrepor / revelar / apagar / lembrar. Escutar as rasuras e os vestígios: a mostra parte do ruído como instrumento que revela e que faz lembrar – algo que irrompe, que desestabiliza, criando estranhamentos. São trabalhos de diversas técnicas e mídias por 15 artistas contemporâneos brasileiros que fazem parte da história do Prêmio PIPA.
Ir na direção contrária da limpidez. Aqui, as obras remixam os tempos, costuram, remendam, recortam e escrevem por cima, nos convidando a pensar o que foi apagado e o que nunca foi escrito. Muitas dessas escritas são feitas de restos e resgates – seja com pôsteres encontrados nas ruas; recortes de revistas; sobras de retalhos, ou fotos re-injetadas de vida.
>> Criar sobre a falta a partir do excesso. O ruído aponta a existência do silêncio a partir de sua presença. O ruído aponta a rigidez, enquanto cria os trajetos da ruptura.
Como elaborou Waly Salomão, “A memória é uma ilha de edição” – e aqui nos voltamos à memória como uma colagem, uma montagem ruidosa. A memória com as fronteiras esmaecidas entre inconsciente, vivências e pesadelo em Eduardo Berliner; a lembrança da cidade nos post-its de Íris Helena; o apagamento de pessoas indígenas em ambientes urbanos e a luz sobre essa presença, projetada por Xadalu Tupã Jekupé, e a memória histórica, nacional, que aos poucos esfarela nas borrachas de Hal Wildson. A estática física criada por Luiz d’Orey com os descartes e a polifonia das ruas, e por Denilson Baniwa, que intercepta o controle do discurso, originando um novo documento, hackeando a narrativa.
A escrita permeia a exposição como um meio de construir realidades – de criar corpo pela palavra ou pela imagem. Na parede de fundo da sala, Virginia de Medeiros traz a importância das imagens como possibilidades de existência a partir do relato e do desejo de duas pessoas em situação de rua. Por cima de utopias anteriores, Hal cria um levante em direção a uma nova, que envolve “Reflorestar Nossa Gente”. Segundo o artista, “É na memória que plantamos a semente do futuro”. Para além da sua obra, árvores, raízes, sementes e ramificações atravessam a exposição na colagem de Cadu, na xilogravura de Fabrício Lopez, no tecido de Randolpho Lamonier, e no bastidor de Dyana Santos – que celebra a autora Carolina Maria de Jesus, com seu nome conectado a letras que germinam.
O nascimento do novo está entrelaçado ao olhar para a memória e para o passado, como na “Sobreposição da história” de Gê Viana, realizando o que Beatriz Lemos chama de “fabulação do arquivo” e de “elaborar memórias que ainda virão”. Entre alvos e arames farpados, o Coletivo Coletores grava formas de resistência em bandanas, retratando o embate de grupos marginalizados contra a violência que perdura. As duas esculturas vestíveis de Dyana Santos que habitam a sala reforçam as relações entre corpo e memória, remetendo à violência colonial. Junto na elaboração de aprisionamentos, Agrade Camíz usa a grade para tratar da opressão feminina e das limitações impostas, mas também do afeto que está ligado às memórias da arquitetura do subúrbio carioca.
Transpondo outras barreiras, Randolpho, filho de costureira, transborda o entendimento que lhe foi passado sobre esse fazer. Em entrevista a Luiz Camillo Osorio para o catálogo do PIPA 2020, o artista conta: “Minha mãe ficou impressionada com o fato de que a gente podia costurar as linhas tortas, eleger o avesso do pano, evidenciar a rasura, o remendo, a mancha, o retalho, a sobra. Não tinha um jeito certo e nem um jeito errado, a costura não seria inspecionada, revisada, e nem tinha que atender a nenhuma função que não ao nosso próprio desejo.”
A costura de modo expandido está também na produção de André Azevedo, que excede os limites do quadro, libertando as linhas da padronagem, e de Dyana, que borda em aço e cobre, misturando delicadeza e força. Se entendemos a realidade como um tecido e as narrativas como costuras, bordar é um ato de reparo e de criar o novo a partir do que existe.
Em meio a uma pluralidade de materiais e temáticas, os artistas entremeiam realidade e fabulação, fazendo do ruído corpo, arquivo e caminho.
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Poéticas do Ruído na Coleção do Instituto PIPA
De 06 de setembro a 16 de novembro de 2025
Curadoria: Alexia Carpilovsky
Supervisão: Luiz Camillo Osorio // Lucrécia Vinhaes
Expografia e Design: Carla Marins e Benjamim Farah
Produção: Patrícia Bello
Montagem: Humberto Cenografia
Artistas: Agrade Camíz, André Azevedo, Cadu, Coletivo Coletores, Denilson Baniwa, Dyana
Santos, Eduardo Berliner, Fabrício Lopez, Gê Viana, Hal Wildson, Íris Helena, Luiz d’Orey, Randolpho Lamonier, Virginia de Medeiros, e Xadalu Tupã Jekupé