Entrada
Já na primeira aproximação, reconhecemos: papéis amassados. Não só: apertados,
comprimidos, mostram uma profusão de vincos, arestas; parecem haver passado por um
processo em que foram exasperadamente amarrotados. Na matéria trabalhada, o olhar
identifica o temperamento do gesto operador.
E logo percebemos que algumas dobras são duras e nervosas, angulosas, ásperas, cortantes;
parecem frias e leves. Outras, diferentemente, exibem uma qualidade líquida, como se os
ângulos tivessem derretido; as dobras se afiguram mais pesadas então e, de algum modo,
mais quentes.
Entendemos, a essa altura, que não se trata de papel amassado, mas modelado, esculpido.
No passo seguinte, deduzimos, um tanto surpresos, que não se trata de um conjunto
homogêneo.
Por fim, o que nos parecia familiar começa a ser estranho.
Mantos brancos
Dos Mantos de Iole irradiam-se imagens dos panejamentos da estatuária grega clássica,
levados adiante pelo universo da arte romana e pelo Renascimento. O efeito simulava na
pedra a aparência de um tecido folgado ao redor de um corpo, formando pregas, dobras,
ondulações, volumes; compunha a própria anatomia, pernas, braços, cinturas, dorso. Era o
empenho possível para a representação, impossível, do próprio ar. Nos Mantos, o
antiquíssimo problema do ar representado pela matéria esculpida converte-se no problema
da incorporação do ar como matéria.
Iole testa em cada obra as verdades físicas de seu corpo e do material que utiliza. Basta ver
para inferirmos o quanto as formas nasceram da peleja, da disputa entre o gesto e o papel.
É flagrante a atuação de uma inteligência física.
Trata-se de uma experimentação que se realiza na manipulação físico-emotiva da matéria,
no aparecimento da forma e na manifestação do espírito como um só fenômeno.
O papel era liso, neutro, sem corpo nem memória, sem ar, inerte, ausente. Iole
soprou nele. Deu a ele o sopro da vida. O papel, agora, está vivo. Veja: ele respira.
Manto vermelho
O Manto vermelho fere-nos como o único ponto de cor em toda a exposição. Diferente do
branco, o vermelho afirma no espaço sua disposição corpórea, material, contrária à vaga
espiritualidade da brancura circundante.
Centro gravitacional, um fio terra, uma ferida. Manto vermelho faz tudo descer à realidade
primeira: o corpo. Sangue: vida e morte.
Mantos brancos
Nos Mantos o ar tem uma dupla presença: sob e sobre; ou: dentro e fora. A moldagem do
papel guarda o ar, que permanece sob a superfície, dentro; com isso, a forma alcançada é
um relevo pleno de ressaltos, protuberâncias de tamanhos diversos, vincos e dobras que
tornam evidente a presença do ar em torno da matéria. O ar, no entanto, é bem mais do
que pura objetividade, algo exterior; nem se limita ao informe, ao irrepresentável, de modo
que a obra não é mais o signo privilegiado para a demonstração do fracasso no embate do
criador com o impossível. O ar é um acontecimento, e Iole vai esculpir sua temporalidade, sua
movimentação permanente e sua presença ritmada, dual e complementar (ins/ex); em
volume, massa e textura, vai torná-lo visualidade.
Algas são organismos essenciais para a vida na Terra: o oxigênio necessário às células dos
seres vivos no processo de respiração aeróbica provém quase totalmente da fotossíntese
realizada por elas. As algas marinhas e de água doce produzem, juntas, mais da metade do
oxigênio do planeta — estamos diante de um fato, estamos diante de uma verdade. Que
fazer com isso? As obras não farão um comentário. Muito menos um retrato.
As Algas de Iole são como são, são o que são, mostram do que são feitas: aço. Variam com
maior ou menor brilho, presença ou ausência de marcas de escovação, níveis de
espelhamento. No entanto, resulta sempre o arrefecimento da imagem vegetal e, com isso,
instala-se a frialdade do espelho e da faca (objetos fundamentais da poética de Iole desde os
anos 1970). Recusa-se o mimetismo em favor do estranhamento. Tudo é exterioridade e
superfície. O contrato proposto pelo nome — Algas — parece harmonizar-se com a forma,
mas entra em flagrante conflito com a matéria exposta. Rompe-se, assim, qualquer pacto
ilusionista. Disso deriva uma ausência de simbolismo e um estatuto de literalidade: a coisa é
o que é. As Algas são de aço. As Algas são o aço que agora é isto: Algas. O brilho severo
dos planos delgados instala a pura vibração de uma pele de aço; ou melhor, exibe a própria
pele do aço.
Algas e Mantos formam o mesmo espaço. Fundam-se na redescoberta de algo
muito primário e vital: a respiração .
Escada
Desordenada e arquitetonicamente extravagante, verticalizada numa grande parede, a
Escada, como as Algas, é arabesco; enorme; é, como os Mantos, um (dois) plano(s)
amarrotado(s). Mas o ar parece ser o mais importante ponto em comum: sem um
endereçamento místico ou mítico, a verticalização da Escada sugere-nos o alto como pura
abertura, movimento desimpedido, circulação, respiração, vento.
Tudo tende à verticalização, como se o ar tivesse de ser buscado no alto.
Não basta chamá-las
— escadas.
Elas — alheias —
não vêm.
Podemos vê-las, porém
elas parecem sozinhas
estão sem nós no silêncio
mudas de nós no vazio.
São vizinhas? São irmãs?
Um só corpo dividido?
Aonde levam? Onde o chão?
Instalaram-se num pátio
longe dos edifícios lógicos
previsíveis pragmáticos
são deformações sintáticas
fogos de artifício congelados
por um erro matemático
parecem duas mulheres
livres altas espantadas
são o espaço programado
para a queda o olho
quebra na costela
de um ângulo
austeras sim
duras sim
são cortantes e pesadas
nenhuma pele ou disfarce
tudo nelas é agudo
— elas nos chamam nos olhos.
Elas nos miram do alto.
Lancemos no alto os olhos.