Uma Obra Iconoclasta
É impossível tratar da contribuição de Márcia X para a arte contemporânea brasileira no espaço que ora disponho. Mas a importância de seu trabalho e sua morte prematura, ocorrida na semana que antecedeu ao carnaval, levam-me à tentativa de situá-lo, ainda que resumidamente.
A produção de Márcia floresceu na contramão da volta à pintura que marcou a década de 80. Período de refluxo dos experimentalismos que levaram à arte das duas décadas anteriores ao transbordamento dos meios artísticos convencionais (e até à sua desmaterialização proposta pela arte conceitual), a obra de Márcia, assim como a de poucos outros artistas de sua geração, tornou-se uma voz dissidente da saudada volta ao fazer pictórico que devolvia ao mercado seu fetiche mais valioso. Dissidência que empresta à sua obra, desde seus primórdios um tom iconoclasta.
Entretanto é indispensável observar que sua iconoclastia diverge daquela das vanguardas históricas do começo do século 20. Voltadas exclusivamente para a radicalização de uma arte em ruptura com a representação mimética clássica, essas vanguardas restringiam sua radicalidade ao campo especializado da investigação plástico-formal, típica da busca pela autonomia da arte. Márcia filia-se a uma outra genealogia: a da tradição inaugurada pelo Dadaísmo (1915-16) e por Marcel Duchamp, desdobrada pelo grupo Fluxus (1962), e, no Brasil, por Flávio de Carvalho, Hélio Oiticica, Antonio Manuel, Nelson Leirner e Tunga, dentre outros, cuja ênfase está na atitude e na ação do artista e não somente na produção de objetos. Daí a intensa atividade performática desde o início de sua trajetória.
Seu trabalho pode ser dividido em dois grandes momentos. O primeiro deles, mais centrado na evocação de sua própria atitude frente à arte, coincide com a década de 80, e foi marcado por sua parceria com Alex Hamburger. A partir dos anos 90 sua obra passa a investir na demolição sistemática de valores estéticos, éticos e políticos do machismo e da face mais opressiva da instituição religiosa do catolicismo. Isto é, parodiava a sexualidade reduzida por um lado ao consumismo (Fábrica fallus, Kaminhas-sutrinhas, por exemplo), e, por outro, sua interdição pura e simples (En nombre del Padre e Desenhando com terços), como valores opressivos da condição feminina.
Alviceleste, performance apresentada em novembro de 2003, nas Cavalariças do Parque Lage, sinalizava uma nova guinada na produção de Márcia. A doença afastou-a desde então da cena artística até a intervenção A cadeira careca, feita com seu marido, Ricardo Ventura, no evento Infiltração nos Pilotis, realizado pela Funarte em novembro de 2004, no pátio do Palácio Gustavo Capanema. Foi seu último trabalho antes de entrar para a história como uma das artistas mais importantes da arte brasileira deste fim de milênio.
Fernando Cocchiarale